Conto: Café amargo e transgressor


Café da manhã  

 

Já trabalhei como vendedor. Considero um dos piores empregos que uma pessoa pode ter na vida. Você vai até uma loja e compra algo, o sujeito é simpático, elogia você, pergunta da família, trabalho, te faz um desconto, sorriso no rosto, você quase o convida para um “happy hour”. Essa é, provavelmente, a última vez que você o verá na vida, se o mercado de trabalho estiver minimamente aquecido. Por isso, jamais confie em alguém que sobrevive num ambiente assim por mais que um ano, dado este tipo de circunstâncias. É mais fácil domesticar um lobo que ensinar tal pessoa a dizer a verdade e ser confiável.  

 

Dias atrás, eu fui até o mercado comprar café e me deparei com uma barraquinha de amostra grátis, ia passar direto, como sempre faço, pois nada mais triste que um jovem com poucas perspectivas se humilhando por uma meta irrealizável, que é tão difícil quanto um mórmon batizar um ateu e salvar sua alma.  

 

—Então…o café é grátis? —pergunto. 

 

—E, é um excelente café senhor. Qual o seu nome? —Lá vem ele, tentando estabelecer um elo de confiança comigo, pessoas adoram ouvir o próprio nome e essas merdas, li em algum livro, de algum coach de vendas imbecil.  

 

Errr..José —Na dúvida use sempre José ou João, nunca sai de moda e tem tanta gente homônima que você conseguirá, com um pouco de sorte, que ele não memorize quem você é. Conheci tantos “joses” na minha vida que até me perco e misturo as histórias e biografias.  

 

O café “Uai” é um café mineiro, grãos selecionados, com notas de chocolatesalienta o rapaz. 

 

Ele me alcança um copinho de prova, eu tomo e devolvo, mas não sem antes comentar:  

 

Tem o gosto da morte!  

 

Desculpe senhor? 

 

Todo café é assim pra mim! Eu não tenho paladar sensível!  

 

Mas, gosto da morte?  

 

Eu fui testemunha na exumação de um amigo, cara bacana, cheiroso e atlético, só tinha os ossos aquela altura e um líquido preto, espumante e da densidade de um expresso estava escorrendo pelas frestas do caixão, me lembrou café, sai dali direto para cafeteria mais próxima.  

 

Não entendi 

 

Nem eu, as vezes converso com meu terapeuta sobre o falecido, ambos concordamos que torrado e moído ele daria um café bem satisfatório, quero dizerfazem café até com merda de pássaro, hoje em dia, porque não com o Jonas?   

 

O senhor não notou o chocolate?  

 

Tem chocolate? Quer dizer que torraram algum junto com o grão?  

 

—É um pouco mais complicado.  

 

Não faz diferença. É barato? Da úlcera? Problemas estomacais? Vicia? Ansiedade? Arritmia? Insônia?  

 

Ele dá uma risadinha nervosa e prossegue:  

 

Se faz mal para você, talvez não seja uma boa ideia tomar.  

 

—Mas eu tomo porque faz mal mesmo. Eu precisava de mais horas de sono, mas sou pobre e fodido, preciso ficar acordado e trabalhar, mesmo que seja às custas da minha saúde, sanidade e dignidade.  

 

Ok, preciso ir até o estoque checar algo. Até 

 

E, lá se foi o David, ou acho que era esse o nome no crachá, parece uma boa pessoa, espero voltar aqui e não o ver. Tomara que não acabe numa loja de departamentos.  

O que poderia ser pior que um lugar como esse?  

 

Uma das pessoas mais tristes que conheci trabalhava no setor de geladeiras e fogões, numa dessas sucursais do inferno. Até esse pobre diabo tinha metas. Nenhuma delas incluía uma morte rápida e indolor. É o tipo de vendedor que sonha em topar com um Ed Gein, ou Jeffrey Dahmer, por semana, ocupado em tocar seu açougue humano e precisando de novos utensílios de cozinha constantemente. Pessoas morreram? Muito triste! Mas o Carlos agora tem a foto de funcionário do mês, num canto escondido da empresa e uma comissão gorda, que permite que ele pague a pensão dos dois filhos e saia a noite, uma vez por mês, para beber e fazer fiasco, voltando pra casa decepcionado e sem comer ninguém. Ou seja, nenhum aspecto positivo. Só o amargo da vida.  

 

Meu Feedback desse café é: Amargo e denso. Igual a morte trágica de quem tenta ajudar alguém a entender algo, ou se livrar de um problema e é surpreendido pelo destino com um tiro ou uma facada nas costas.  

 



Café da tarde  

 



Todo mundo que já defecou de cócoras num jornal, às 5 da manhã, coletou parte da merda com uma pá de sorvete, se melecou colocando-a num potinho como se fosse um achado arqueológico, ou a prova de um crime, depois enfrentou uma fila, onde ouviu uma atendente gritar:”Ah! Esse é o seu exame de fezes! ?!”, sabe o quanto laboratórios são lugares em que as pessoas sentem que são pedaços de carne, pelo menos até elas precisarem de atendimento num pronto-socorro e terem certeza. Por isso sempre fico no modo “engraçado” em situações tensas na área da saúde. Até o médico que fez colonoscopia em mim riu, enquanto enfiava uma vareta de 4 metros no meu cu, eu estava com um sorriso no rosto e querendo morrer, mas sobrevivi, porque partir depois de passar tanta vergonha seria muito fácil, os outros precisam saber de nossa miséria pra terem algo pra se sentirem bem por terem mais sorte, mesmo que temporariamente, até a vez deles chegar.  

 

—Você anda comendo muito doce? —A enfermeira do laboratório me pergunta.  

 

Não, eu sou gordo por causa dos remédios tarja preta e problemas na tireoide.  

 

—É que em um dos exames o médico pediu para ver a glicemia.  

 

Eu olho para o porta-treco, onde as cápsulas com sangue, etiquetadas com meu nome, ficam e deve haver umas vinte, a moça tá puxando conversa, provavelmente, para que eu não fique ansioso ou desmaie.  

 

—É bastante sangue,  

 

Não se preocupe o sr. tem muito mais!  

 

Disse o vampiro modesto, não querendo perturbar a vítima mais que o necessário, enquanto se alimenta. 

 

Consegui fazer ela rir. Eu sempre saio com uma dessas nos piores momentos, no fundo só tô tentando me enganar sobre a situação merda em que estou metido.  

 

—E pensar que pra clonar alguém só com esse líquido e alguma técnica,  

 

O sr. tem medo de ser clonado? Ela entra na brincadeira. 

 

Eu sempre penso na ovelha dolly, disseram que várias cópias morreram e só uma foi azarada o suficiente pra sobreviver e virar cobaia de laboratório, mas não foi por muito tempo. As vezes ter sucesso é exatamente assim: Você se fode!  

 

O sr. é sempre tão otimista? 

 

Está aí! Deveriam criar uma regra de só clonar quem é feliz e otimista. Nunca vi uma ovelha rir ou falar de seus planos para o futuro, mas tampouco alguma já fez terapia e tomou tarja preta porque não conseguia dormir.  

 

Pronto! Agora pode interromper o jejum, tem um café na cantina. Uma boa tarde para você 

 

Obrigado.  

 

O meu Feedback desse segundo café é: Doce e suave, igual a morte por dosagem excessiva de sedativo, antes de uma cirurgia. Os parentes e amigos choram, mas ficariam com inveja se soubessem que a vez deles não vai ser na Ferrari das partidas, deslizando suavemente pela estrada para o esquecimento.  

 



Café da noite  

 


Psiquiatra é o profissional que lida tanto com pessoas com dificuldade, que te passa a impressão de que você está mais saudável que ele, dependendo do dia. O médico está concordando com tudo que você diz e, do nada, solta algo como:” você fica excitado com merda ou vendo as coisas pegarem fogo? Pode me contar! Aqui tudo é sigiloso!”, e sempre se decepciona quando ouve um “não!”. No fundo, ele queria algum desafio, foi isso que o motivou a entrar para essa área. Quando assistiu Anthony Hopkins interpretar Hannibal Lecter, ele acreditou que o tornaria em um vegetariano exemplar, se tivesse a chance, mas seus pacientes são todos daquele tipo que não consegue convencer nem mesmo a previdência social que deveriam estar aposentados. Um terno, um pouco de dinheiro, não tomar remédio quando for discursar de um palanque, ou dar entrevista, e qualquer um deles poderia facilmente chegar a presidente do Brasil, pois ficou provado, pela história recente, que é algo totalmente plausível. Não quero fazer suposições precipitadas, mas somos um dos países que mais toma ansiolíticos no mundo, por isso se você disser algo estranho e sem sentido, provavelmente ressoará na mente de uma percentagem expressiva da população.  

 

está meu paciente preferido! -Diz o psiquiatra. 

 

O senhor sabe que sou paranoico. Faz isso pra me testar, né 

 

Você tá bem, pela forma que essa resposta veio. Sua percepção tá boa.  

 

Eu também sei ler as pessoas, doutor.  

 

E as namoradas? -Ele sempre entra nesse assunto, deve ser porque sabe o quão difícil é, para um paciente psiquiátrico, não morrer sozinho.  

 

—É assim que chamam as “damas da noite”, lá na sua terra? —O médico é natural de Santa Catarina. 

 

Senso de humor está preservadoEle murmura, enquanto anota.  

 

—O senhor devia anotar as piadas também, para quem sabe trabalhar no “stand up”, caso a psiquiatria de errado. Inclusive, posso ser seu roteirista.  

 

E a escrita? Anda praticando?  

 

To escrevendo um conto relacionando café, conversas, pessoas e morte.  

 

Ele olha por cima do aro dos seus óculos e para de escrever:  

 

Qual a relação?  

 

Nenhuma, eu acho. 

 

Contos são assim, aleatórios?  

 

Na escola, as professoras de arte sempre tentaram me convencer que os rabiscos em quadros abstratos tinham algum sentido, nunca acreditei, mas vende!  

 

E, eu tô nesse conto?  

 

Sim. Uma versão romantizada e séria.  

 

Acho que entendo. 

 

Espero que não doutor, você não vai querer acabar como eu.  

 

Todo mundo tem um pouco de loucura dentro de si, João.  

 

Se todo mundo tem só um pouco, posso distribuir a minha que tem de sobra? Fui ensinado a compartilhar as coisas. Aliás, tem café 

 

Acho que já conversamos sobre isso. Não é bom tomar café, em excesso, no seu caso.  

 

Mas tem?  

 

Ele suspira. E me alcança um copinho.  

 

Feedback do último café do dia: Amargo, frio e econômico, como aquela morte por acidente de trabalho, onde cobrem seu corpo com uma lona, chamam a medicina legal, colegas não ganham folga, a produção não para por um segundo sequer, avisam o jurídico, o RH manda um recado pré-definido, em reunião, para sua família, o seguro começa a procurar brechas na lei para não cumprir com sua parte no contrato, anunciam uma nova vaga na agência de emprego, sua esposa fica livre para assumir o ficante com a consciência tranquila e talvez seu PET fique chateado por uns dias. 

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