Conto: O último voo do passaro


Diário 

Dia 01


Quando as aves começaram a desaparecer, lembrei-me das palavras de minha bisavó sobre como encontrar frutos comestíveis dentro da mata fechada, mesmo sem conhecimentos prévios em sobrevivência na natureza.  Ela dizia que toda fruta que pode ser ingerida por uma pessoa é fonte de alimento para os passarinhos. Daí, deduzo que se as aves estão em extinção por todo o planeta, a terra não é mais habitável para os homens e periga que quando o último pardal cair, morrerá também o último homem.

Os detalhes de como chegamos até esse ponto de destruição me são desconhecidos. Fontes de conhecimento confiáveis não são o forte do mundo por esses dias, tampouco o eram quando ainda existiam testemunhas oculares de tudo o que ocorreu, mas o que se pode dizer sem medo de errar é que houve algum conflito de larga escala, mas os motivos para tanto vão desde o folclore puro e simples até a teoria da conspiração mais obscena. 

Ando sempre com um pássaro, preso numa gaiola, para onde quer que eu vá, para me certificar de que não estou em território mortífero. Usaria algum daqueles equipamentos que os antigos usavam para medir a mesma coisa se os grandes centros, onde alguns desses utensílios ficam, não fossem os lugares mais afetados pelo envenenamento. 

Pessoas expostas ao ambiente doente sabem que vão morrer ao verem os cabelos caírem, ou com o surgimento de queimaduras na pele, depois vem a fraqueza, as náuseas, o vômito e uma morte lenta e dolorosa, com uma dor que não pode ser acalmada por nenhum método disponível, a não ser com o auxílio de outro para encerrar a vida de maneira abrupta. 

Os pássaros, em gaiolas, ajudam, mas não podem nos livrar de nossa própria gaiola, que é viver com medo e fugindo.

No Sul, dizem que no Norte há prosperidade e um mundo mais saudável, com uma pequena sociedade organizada e com leis, mas quem já caminhou o suficiente sabe que o povo do Norte diz o mesmo sobre a direção oposta. Minha jornada atual não é muito diferente em objetivos, procuro algum lugar, como já fiz a direção Sul-Norte, agora estou na busca pela Leste-Oeste.

O leste brasileiro é, em grande medida, um lugar maldito, onde é prudente só se deslocar a noite, por causa dos inúmeros grupos de sobreviventes, que te matariam apenas para ver o tombo, isso quando não estamos diante de canibais vorazes. Já o que torna o Oeste mais atrativo é a solidão pura e simples, haja vista que povoados são mais incomuns nessas partes do continente. 

As placas de sinalização das estradas, em boa parte destruídas, dizem que estou indo para Foz do Iguaçu, um lugar no meio do deserto, onde um dia já houve corredeiras imensas de água, segundo alguns antigos moradores daquele lugar, que eu conheci quando ainda tinha pouca idade.  

Resolvi escrever um diário, sem qualquer motivo ou causa aparente, apenas como forma de tentar me comunicar com alguma coisa, a fim de mascarar a falta que o contato humano faz na mente dos que são solitários. Dizem que a solidão pode enlouquecer até a pessoa mais sã, mas será capaz de fazer algo na mente de quem já está louco? Sou eu, ou o mundo que enlouqueceu?


Dia 02


Os campos, da região oeste, estão cheios de urutaus, a ave com o canto mais sinistro que alguém vai ouvir na vida, não à toa os antigos atribuíram a presença dessa ave na uma mensagem do além de que alguém morreria. Armei uma arapuca e prendi um exemplar dessa espécie na minha gaiola reserva.

Contornei uma pequena cidade e, por sorte, encontrei um rio cuja água parecia segura, já que havias pássaros bebendo dele, muita vegetação e até algum tipo de criatura nadando no fundo, parecida com uma cobra. Estoquei o que pude no cantil e segui viagem.

Ouvi gritos ao longe, mas acelerei o passo, por via das dúvidas sempre é bom ir na direção contrária de barulhos como este.


Dia 03


Alguma coisa pareceu incomodar o pardal e o urutau, que não pararam de cantar desde ontem à noite, de modo que pensei que tombariam mortos a qualquer momento, mas nada aconteceu.

Não sei se estou enlouquecendo, mas continuo a fugir de gritos que parecem distantes, de modo que, a essa altura, me questiono se são reais ou não.  

Acredito que estou rodeado de matilhas de cães selvagens, que são muito comuns por estas paragens, posso estar confundindo seus uivos com gritos, mas a prudência recomenda não tentar descobrir já que, seja um ou outro, o risco é grande demais para ser ignorado.

A única arma de que disponho é um facão, com ela já cortei alguns pescoços, humanos e animais. É o único tipo de arma da qual a maioria dispõe. Treino sozinha alguns golpes todos os dias para não ficar enferrujada, caso precise lutar. Como os cães temem o fogo faço fogueiras a noite para, eventualmente, me defender de seus ataques.

Ouço gritos na mata, mesmo agora, enquanto escrevo. Percebo que estou sendo seguida por alguma matilha, por hora é o que consigo relatar.  


Dia 04 


Meu pai contava histórias formidáveis sobre falcoaria quando eu era pequena. Um animal desses seria um artigo de luxo em condições tão deploráveis como as que me encontro. Com ele poderia rastrear perigos distantes e até mesmo caçar pequenos animais. 

Enquanto um falcão sobrevive por sua visão privilegiada, nós homens, talvez, sobrevivamos devido nossa falta de visão a respeito das coisas. Que decisão tomaríamos se com uma percepção melhor das condições e possibilidades de nossa existência, notássemos que a vida é um penduricalho sem utilidade e que estaríamos melhor se estivéssemos mortos? 

Continuo fugindo de barulhos na estrada, mesmo a noite consigo ouvir sussurros e gemidos distantes. Andei até meus pés doerem e, ainda sim, continuo me sentindo como se estivesse sendo perseguida. Seriam canibais à espreita? Já fugi de grupos deles em regiões distantes por dias, antes que conseguisse despistá-los. 


Dia 05

  Encontrei um velho imóvel a beira da estrada, com calendários de épocas no passado, pendurados por toda parte, dando conta de um tempo em que contar os dias era uma tarefa útil, diferente de hoje, em que não há muitas novidades e só se diferenciam os meses pela passagem das estações.

Na parede interna de um dos cômodos encontro a frase, pintada com letras garrafais; “INVEJO AS FLORES QUE MURCHANDO MORREM, E AS AVES QUE DESMAIAM-SE CANTANDO E EXPIRAM SEM SOFRER...” ÀLVARES DE AZEVEDO.

Há ossos de mortos com marcas de dentes aqui, bem como sinais de fogueiras no centro do local. 


Dia 06 

A cada passo do caminho tropeço em novos sítios de ossadas humanas. Tenho tentado evitar pensar sobre o assunto, mas chega esse momento do dia e sinto que preciso colocar para fora de algum jeito, pois parece que subestimei o quão horripilante o oeste poderia ser. 

A terra é fétida, todo lugar cheira a morte, não há animais de nenhum tipo e tudo que consegui de comida foram algumas raízes. Irônico que eu tenha vivido tanto no meio de lunáticos e sádicos, para morrer num lugar deserto rodeado de feras selvagens. 

Ainda não identifiquei se são cães ou homens que estão atrás de mim, mas me sinto fraca a ponto de não conseguir desenvolver uma caminhada no dia de hoje, deitar-me-ei um pouco para tentar recobrar as forças e ver se faço mais pela manhã.


Dia 07


Meus pássaros sumiram. É como se algo os tivesse pegado no momento em que não estava de vigília. São urubus humanos todos esses desgraçados, apenas esperando o momento certo para atacar, quando a caça, já desprovida de força, desfalece a beira da estrada.

Sinto me fraca a ponto de duvidar se conseguirei escrever mais.  Pareço ter alçado meu último voo. Ouço gritos, misturados com uivos. Estão vindo ao meu encontro, finalmente.


Breve anotação póstuma.

Encontrei esse diário junto a várias ossadas humanas, que parecem ser de vítimas de canibais. Como não me pertence, não achei conveniente me apossar dele, mas o enterro com os restos mortais que me foi possível encontrar, além do que julgo ser parte dos pertences da dona: Um facão, bem afiado, e duas gaiolas vazias. 


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