Um cadáver

 



Carlos Manivela e Pedro Cicatriz eram dois bandidos do baixo clero da milícia. Faziam pequenos serviços sujos para seus superiores sem muito questionamento, o que lhes assegurava, além de alguma recompensa monetária, a preservação da própria vida. Enquanto o primeiro tinha algum grau de instrução, o segundo mal sabia escrever o próprio nome. Chegou-lhes no celular um pedido pelo grupo de mensagens instantâneas: o chefe requerendo um cadáver. Um homem branco, em torno de 1,80m de altura, de preferência com todos os dentes na boca. Alguém precisava ser dado como morto em um incêndio para desaparecer do radar da justiça. 

 Achar um corpo fresco já seria uma tarefa inglória, mas com aquela aparência, num lugar onde se enterravam pessoas da periferia, era uma missão quase impossível. Mesmo assim, naquela noite, os dois adentraram a zona mortuária para interromper o descanso final de algum infeliz, na esperança de encontrar aquele que ganharia o prêmio de ser reenterrado como membro da máfia. 

 — Segure essa lanterna direito! Preciso enxergar as datas nas placas! Alguém com mais de trinta e um anos, do sexo masculino, encafuado de preferência nos últimos dois dias! 

 Enquanto caminhavam por entre as lápides, Cicatriz começou a ser acometido por um sentimento de superstição, lembrando-se de lendas que seus pais contavam sobre mortos que eram soterrados enquanto possuídos por demônios. Rodeados de itens sagrados, pois nenhum líder eclesiástico pudera se encarregar de expulsar a entidade, pois esta, sendo um portal aberto para o inferno, não poderia ser contida com orações e jejuns. Isso obrigava os familiares, para não ter que viver uma vida miserável em tão terrível companhia, a se livrar do ente querido numa cova não identificada, pagando um preço razoável pelo silêncio de algumas autoridades. 

 — Aqui! A terra foi recentemente mexida! Que raio de barulho é esse? Parecem batidas! 

 — Melhor não, Manivela! A cova ainda não tem identificação! Ouvi alguns rumores inquietantes sobre isso, falando de demônios aprisionados! 

 — O demônio? Ele vai fugir assim que ver sua cara feia! Não se preocupe! Comece a cavar! 

 Pedro era extremamente habilidoso com uma pá. Em minutos, estavam diante de um caixão de madeira maciço, amarrado com cordas. 

 — Cacetada! Olha só esse caixão! Por que as cordas? 

 — Melhor procurarmos outro! Não abra o caixão! 

 — Qual é? Você não tem malícia? Não sabemos quem enterrou, nem o que foi enterrado. Pode ser um grupo de ladrões escondendo o despojo esperando a poeira abaixar, antes de vir resgatar o prêmio! 

 O caixão balançou e uma voz masculina começou a ficar audível desde seu interior. 

 — Socorro! Fui enterrado vivo! Me ajudem! 

 — E esta agora? Quem diabos é você? — respondeu nervosamente Carlos. 

 — Não fiz nada! Sou uma alma inocente! Pessoas perversas me trancafiaram e, ainda há pouco, me puseram aqui! Sou só um simples advogado que mexeu com gente muito poderosa! 

 — Advogado é? Pode jogar terra por cima de novo, Pedro! 

 — Espere! O que você tem contra advogados? 

 — É uma longa história. Se você não for o diabo como preconizou meu amigo, com certeza trabalha para ele! Vamos, pode seguir! 

 Pedro começou a jogar terra sobre o ataúde, sob protestos de quem estava em seu interior. 

 — Espere! Não façam isso! Eu posso ser útil! Sou advogado tributarista! Eu sou bom no que faço! 

 — Espere, Pedro! — Ele interrompeu o trabalho — E quantos por cento você cobraria para me ajudar a ocultar meu patrimônio? 

 — Para você faria um preço camarada! Digamos uns trinta por cento! 

 — Trinta por cento eu consigo com qualquer advogado mequetrefe! Continue, amigo! Vai fundo! — As pazadas de terra reiniciaram. 

 — bom! Quinze por cento! Veja o que me fez prometer, isso mal paga o tempo de dedicação num processo desses, mas você venceu! Só me tire daqui! 

 — Pare, Cicatriz! — O buraco já estava cheio pela metade, o criminoso pouco instruído cada vez entendia menos o que ocorria — Onde você se formou? Melhor me dizer a verdade! 

 — , vou ser super sincero! Eu fiz à distância! Mas o curso é reconhecido pela Ordem dos Advogados e pela Secretaria de Educação! Eu sou dedicado e autodidata! Não seja preconceituoso contra instituições de ensino com metodologias modernas! 

 — Prossiga com o enterro! Para piorar, ainda fez por correspondência! Se eu te tirar daí, vai querer que eu te chame de doutor também? 

 — Mas eu sou doutor! Esse título é assegurado por uma lei do império, outorgada por Dom Pedro II, de que todos os formados na ciência do direito têm o título de doutor! Por favor! Não me deixe! 

 Pedro terminou o trabalho e assentou bem a terra com a pá. 

 — Arrogante! Doutor é quem tem doutorado! Nem sabia que leis de épocas em que outra constituição era vigente precisam ser recepcionadas pela atual para vigorarem. Fizemos um favor à humanidade aqui, cérebro de minhoca! Ele ia passar a vida cobrando caro e prestando um serviço ruim, além de pensar que é grande coisa porque é graduado numa ciência dogmática, que nem tem base na realidade fática, mas em uma ideologia filosófica barata feita para conservar o bom funcionamento do sistema opressor em que vivemos! Sigamos! Tem outras covas recentes aqui. 

 Caminharam mais um pouco até chegar a um terreno cheio de objetos religiosos, parte da parca relva queimada e um cheiro de enxofre presente. Carlos marcou o lugar com uma vara para que o colega começasse. Algumas pás de terra depois, se depararam com um caixão de ferro fundido, trancado com cadeados e envolto em correntes. Na parte superior havia uma oração em latim marcada com tinta vermelha. Cicatriz agora estava convicto de que a lenda era real, só poderia haver o mal dentro daquele esquife. 

 — Melhor seria desenterrar o advogado! 

 — Você e suas superstições, não é mesmo? 

 — Quem está aí? — Uma voz feminina rompeu o silêncio partindo de dentro do ataúde. 

 — Já está começando a me incomodar essa história, ninguém morre mais não? E você quem é? 

 — Sou uma mulher trans! 

 — Uma mulher trans? Mas que filhos da puta! Este é o resultado do preconceito na sociedade em que vivemos! Olha o que fizeram com ela! Não se preocupe, vamos te tirar daí! 

 — Não vai fazer mais perguntas? — Indagou o outro bandido, preocupado. 

 — Você não entenderia! Porque é um preconceituoso! 

 — Sim. Me ajude, bonitão! — respondeu a voz. 

 — Está vendo, miolo mole? Ela me entende! Me dê a pá! Eu mesmo vou fazer isso! — Cicatriz, desconfiado, alcançou a pá, mas foi se afastando à medida que os cadeados eram rompidos. Quando o caixão foi aberto, uma criatura demoníaca, com a cabeça cheia de chifres e o corpo em chamas, soltou um grito que fez a terra tremer e todos os corpos enterrados foram cuspidos pela terra para a superfície. O monstro saiu em disparada pelo meio da mata ao redor, incendiando-a. Pedro achegou-se à cova, onde Carlos estava paralisado como uma estátua. O advogado, agora liberto, também apareceu. 

 — Eu vou denunciar os dois por omissão de socorro, tentativa de homicídio e vilipêndio de cadáver! Aguardem a intimação! — Depois, retirou-se rapidamente do local. 

 Pedro não era exatamente o tipo de pessoa com vontade de causar pânico nos outros, mas ao ver que os mortos saíam caminhando de seus túmulos, aproximou-se do colega, ainda em estado catatônico no interior da cova, e teceu alguns comentários. 

 — Bem, essa questão tem dois lados interessantes: O coveiro vai ter uma semana infernal, mas no fim vai se sentir recompensado pela quantidade que vai receber pelo retrabalho. Agora o problema é como fazer isso se os defuntos estão todos possuídos e se movendo? 

 Carlos se levantou de onde estava, sem entender nada, e deu uma olhada ao redor. Realmente viu que o comparsa falava a verdade, então o puxou para dentro do buraco e fez uma ligação telefônica. 

 — Chefe! Tivemos um pequeno problema! 

 Do outro lado da linha, o psicopata que regia tudo com mãos de ferro, de alcunha Macarrão, parecia tranquilo no viva-voz. 

 — Não me diga! O que poderia ser tão difícil em desenterrar um corpo? 

 — Estão todos se movendo para fora do cemitério! 

 — Eu disse que queria um defunto! Vocês me arranjam um! Além do mais, já disse para você se manter afastado das drogas durante o trabalho! Que papo louco é esse de morto andando? Não importa o que esteja acontecendo, quero o que eu pedi! Sejam rápidos! — A chamada foi encerrada. 

 Carlos respirou fundo, estava amedrontado. Ele precisava de um cadáver, era tudo ou nada, estivesse inerte ou dançando “Thriller” sob a luz da lua, não importava. Deu uma observada pela beirada do buraco e ouvia gritos por toda parte. Avistou um que podia servir em meio a um sem-número de putrefatos que agora circundavam o perímetro, estava vestido com um terno, tinha a altura desejada, estava em boas condições físicas, tinha que servir. 

 — Pedro! Presta atenção! Temos que correr até nosso carro, mas precisamos levar o nerd de terno que está a uns cem metros a norte daqui, é fácil porque nosso carro está mais uns trezentos metros dali, estacionado perto da calçada. Então o plano é o seguinte: Você chama a atenção dele, enquanto eu vou até o porta-malas e pego a corda para amarrá-lo e um pé de cabra para acertá-lo. Te espero lá! 

 — Por que eu tenho de ser a isca? 

 — Divisão do trabalho! Não sou eu que faço as regras! Você veio como auxiliar! Quer algum dia ser promovido? Faça o que estou te dizendo! Quando eu contar até cinco, nós corremos. Um, dois, três, quatro, cinco! — Saíram desengonçados, quase esbarrando nos mortos-vivos, até chegarem perto do alvo, quando Pedro começou a provocá-lo, cutucando-o com uma vara, o que o fez ficar enfurecido e ir atrás dele. 

 Carlos não achava as chaves do porta-malas e o colega já chegava correndo desesperado e se enfiando no banco do passageiro, com a porta trancada. O morto ficou no para-brisa dianteiro, batendo e tentando alcançá-lo, então o outro bandido se sentou, irritado, no banco do motorista. 

 — Nós tínhamos que amarrá-lo, gênio! Como vamos levá-lo assim? 

 — Eu sei lá! Ele está subindo no capô e tem mais alguns deles vindo aí! 

 Manivela ligou o carro e saiu em disparada, tentando manter o defunto na posição em que estava agarrado à frente do carro enquanto tentava quebrar o vidro. Irritado, ele reclamou para Pedro. 

 — Pronto! Era só o que me faltava! Essa noite não poderia ter sido pior! 

 — Se você não tivesse vontade de se enrabichar com uma travesti, nada disso teria acontecido para começo de conversa! 

 — Sabe de uma coisa? Você é um fascista, Cicatriz! Por causa de pessoas como você, o mundo está do jeito que está! Não precisa dizer! Eu sei em quem você votou! 

 — Você é um bandido como eu! Por que se acha melhor? 

 — Porque eu tenho consciência de classe! 

 — Aposto que nunca nem leu um livro do Karl Marx! 

 — Quer saber a verdade? Não li! Mas eu sei do que estou falando! Diferentemente de você, eu acredito nas vacinas! Eu me preocupo com as minorias!  

 — E em mortos-vivos e demônios? Você acredita? 

 — Até agora não acreditava, mas quer saber? Deve ter uma explicação plausível para o que está acontecendo! —Observou o zumbi quase caindo do carro— Ele está escorregando do capô, dá umas batidinhas no centro do para-brisa! — Pedro bateu perto do retrovisor e o morto se ajeitou, subindo um pouco mais no carro, enquanto esfregava a cara assustadora contra o vidro frontal. 

 Dezenas de viaturas passaram por eles com as sirenes ligadas, correndo em alta velocidade em direção ao cemitério, mas nenhuma se deu ao trabalho de pará-los por transportar alguém do lado de fora do carro. A uma certa altura, eles estavam próximos do ponto de encontro com Macarrão, em uma área rural afastada da cidade. Viram seu carro estacionado e pararam. 

 — Tudo bem, Pedro! Agora distraia ele enquanto eu pego um revólver com o chefe! 

 — O que você vai fazer? 

 — Atirar na cabeça dele! Nunca viu um filme desses? É só mirar no cérebro! 

 — Tá, mas isso é com zumbis causados por vírus! Este é um tipo diferente, teve o envolvimento de alguma entidade maligna, tem diferença, sabia? 

 — Agora virou perito em zumbis? Faça-me o favor! Qual seria a solução então, doutor?! 

 — Baseado na filmografia, são quatro possibilidades: 1-Exorcismo, 2-Acabar com a fonte do poder, 3-Desmembramento; 4- Fugir e deixar tudo para trás. 

 O telefone tocou e Macarrão parecia incomodado. 

 — Eu pedi um morto! O que vocês estão fazendo com esse branquelo vivo na frente do carro?  

 — É uma história longa! — respondeu Carlos. 

 — Fiquem onde estão! Eu estou indo até aí! — Então, desligou o telefone. 

 O corpulento chefe da milícia atirou várias vezes contra o zumbi, mas nada aconteceu. Em seguida, foi atacado por ele diante dos incrédulos comparsas e teve parte do pescoço arrancado a mordidas, tombando morto na estrada. Carlos ligou o carro e foi embora, deixando o local. Assustado, ele começou a conversar com Pedro. 

 — E agora? Como vamos explicar para o restante do grupo o que ocorreu? 

 — Talvez pedir para que liguem o rádio ou naveguem nos sites de notícias na internet. 

 Cicatriz sintonizou na FM 101.5, onde um radialista narrava o que estava ocorrendo: “É o apocalipse, minha gente! A cidade está sendo tomada por zumbis! Não saiam de casa! Fiquem em algum lugar seguro enquanto as autoridades e o exército estão a caminho.”. Ele abaixou o volume e comentou. 

 — Acho que podíamos ir até o litoral, soube que estão contratando! Mas está cheio de fachos você não ia gostar!  

 — Ah! Olha como ele é irônico minha gente! Cala a boca, Pedro! Você nem sabe votar! 

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